sábado, 5 de junho de 2010

O dia em que paguei a conta pra alguém muito mais rico que eu

Era quarta-feira. Depois de um estafante dia de trabalho, com repetidas horas de diplomacia verbal, sorrisos forçados, do café ralo e doce (tática das grandes empresas para um maior rendimento do pó de café, não muito inteligente, pois o açúcar não anda tão barato assim), da secretária de voz fina batendo toda hora na porta de sua sala pra anunciar seus clientes.
Costumeiramente, gosto de sair quando todos já se foram. Na terceira gaveta da minha Workstation, lá no fundo, fica guardada uma uisqueira de aço inox, presente de amigo oculto do pessoal do serviço, que sempre tem em seu interior o cachorro engarrafado, melhor amigo do homem, segundo o sábio Vinícius de Moraes, terapeuta sexual de todo brasileiro dotado de cultura e altos índices de libido literária.
Depois do farto gole, uma balinha de menta, pasta pendurada como todo bom professor costuma carregar, entrei no elevador. Trabalho no oitavo andar de um grande edifício na Avenida Afonso Pena, próximo ao Palácio das Artes. Geralmente voltaria para casa a pé, moro perto do serviço, no entanto, essa quarta feira em particular estava difícil de engolir. Muitas memórias da minha recém terminada vida de estudante no interior voltaram com força e tiraram qualquer possibilidade de sono. Eram 19 horas. Caminhei até o ponto de ônibus, embarquei rumo a Savassi. Destino certo, o piano bar em que eu tocava como pianista convidado duas quintas feiras por mês.
Mas era quarta-feira. Dia da semana internacionalmente conhecido como dia morto. Ainda mais quando chove. E choveu o dia inteiro. O asfalto molhado, o clima levemente frio de maio e o céu avermelhado anunciando uma nova chuva tornaram o glamour da região em clima de filme noir. Bar adentro três casais, sentados em mesas remotas do bar. Resolvi tomar acento em um banco diferente do que sempre me sentava dessa vez bem longe do piano, no balcão.
- Boa noite Lazzari,
- Boa noite Jorge.
Jorge era um senhor simpático, com seus cinqüenta anos, casado, sem filhos, sempre cordial. Serviu-me sem demora o campari com laranja, o potinho de amendoim e a cachaça de Jequerí, que costumeiramente pedia e ele depositava na banqueta ao lado do Kawai negro que se impunha no palco principal. Dessa vez tudo no balcão.
Em um canto do bar, um dos casais se bolinava discretamente, mas não o suficiente para fugir dos olhares de Jorge que sorria levemente e me indicava o campo de visão correto: - Lazzari, perturbação na força às seis horas!
O relógio corria lento. Areta Franklin passava a mensagem de melancolia pelos alto falantes do bar, e isso com certeza só agravava minhas incomodas memórias.
Eis que de repente, pela porta principal, entrou uma figura de certa forma incomum dado o horário já avançado. Um senhor de aproximadamente quarenta anos, alto, forte, ombros largos, moreno com olhos azuis logicamente não tupiniquins.
Aproximou-se do balcão do bar, um tanto quanto atrapalhando, pegando um dicionário inglês português de dentro de seu, sobretudo e pediu de forma tímida, no entanto com um timbre de voz imponente
- Boa noite, Senhor pode me dar o cardápio, por favor?
Jorge, poliglota por necessidade, disparou:
-We can talk only in English Sr.
Nesse exato momento, o Americano aparentemente relaxou, largou os ombros e agradeceu. Pediu a Jorge um uísque que me recuso a dizer quanto custa à garrafa, e fitando-me com o olhar, perguntou-me se aceitava. Educadamente, disse que já estava tomando o uísque natural de perto de minha cidade natal. Interessado, ele pediu a Jorge que bebesse a dose de uísque servida e trouxesse para ele uma pinga de Jequerí. Prontamente servido, me propôs um brinde, que graças a meu inglês de cursinho, consegui entender direito:
- A sua saúde, a seu coração e a distância continental das minhas mágoas.
-Amém meu companheiro!
Claro, como todo bom brasileiro, a cachaça para quem sofre, como eu sofria naquela noite, desceu como bálsamo. Já para meu amigo estrangeiro, desceu tão pesada que refletiu em seus olhos, três lágrimas dos olhos azuis, duas do direito, uma do esquerdo. Cara de susto seguramos a vontade de rir, Jorge e eu, afinal um homem de quase dois metros de altura chorando configura-se como uma das cenas mais inusitadas que se pode observar em um bar.
Começamos a conversar os três. Nosso visitante contou que estava em Belo Horizonte à negócios, já que sua empresa iria oferecer um serviço de internet super rápida às forças armadas, e os ministros das telecomunicações e da defesa se encontravam na cidade para uma feira internacional de tecnologia. Era solteiro, no entanto, para auxiliar nas funções de seu trabalho, adotou três filhos, que mostrou em fotos na carteira: - Olhem! Esse é o mais velho, Dick, já não trabalha comigo, resolveu seguir meus passos de forma independente. Esse aqui é o Jason, infelizmente faleceu já há algum tempo. E o mais novo, Timothy, adotei antes mesmo de perder o pai, ainda trabalha comigo e faz faculdade de tecnologia! O garoto sabe tudo sobre computadores e telecomunicações!
A conversa perdeu totalmente a formalidade, e ele nos contou boa parte de sua vida. Tinha muito dinheiro, mas necessidade de trabalhar durante o dia, e era compulsivo em trabalhar durante a noite. Tinha dois empregos. Não tinha parentes próximos vivos. E nesses dias em que viajava e ficava fora, sentia-se na obrigação de trabalhar a noite também, no entanto não dominava bem o ambiente em que se encontrava.
Em retribuição, contei-lhe a minha vida de professor e consultor, a rotina das aulas e palestras, o café ruim, e um sem número de atividade sem emoção do meu dia a dia.
Foi então que ele me disse algo que ficaria marcado pra sempre em minha cabeça e em meu coração: Faça o que nasceu pra fazer, ou o que o mundo que te cerca te forçou a fazer. Você pode não encontrar prazer, mais paralisa um pouco a sua dor.
Quase duas da manhã, eu estava ligeiramente bêbado, ele tirou o cartão de crédito sentindo-se obrigado a pagar a conta, ainda mais alcoolizado do que eu. Jorge foi passar o cartão do Americano, quando pela porta entrou um senhor já de idade, terno inglês, calvo com um bigodinho estilo malandro carioca. Meu novo amigo dirigiu-se a ele:
-Alfred! Veio me buscar? Eu já estava indo, mas ainda bem que você veio, não estou em condições de dirigir hoje.
-Certamente Senhor! Avisei-lhe que as bebidas dos trópicos são mais poderosas que as de nossa adega.
Jorge voltava com o cartão e constrangido, disse que ele havia sido recusado por ser de bandeira diferente, embora fosse um pouco parecido com o American Xpress.
- Pode deixar Jorge! Abate no meu cachê de semana passada aí que o cara é gente boa!
O americano, constrangido, aceitou que eu pagasse a conta, quebrou o cartão com raiva e jogou em um cinzeiro. Escorado em seu Motorista, despediu-se educadamente, dizendo que voltaria outro dia, o motorista desejou boa noite e saíram.
Já na porta, gritei: Hei amigo, não sabemos seu nome!
- Bruce! Até mais companheiros...
E saíram pela porta rumo a um carro preto do outro lado da rua.
Jorge limpava o balcão com a toalha, os casais já haviam partido somente nós dois estávamos no bar. Esperei que ele terminasse seu serviço, pra irmos embora juntos, ele iria me dar uma carona.
Quando pegou o cinzeiro, olhou as metades do cartão, e fez uma observação:- Ghotan Xpress? Esse eu não conhecia! Deve ser de alguma financeira, sei lá...
E vai saber? Terminou de arrumar o balcão, fechou o bar e me levou pra casa.
Antes de deitar, refleti na frase que o Sr. Bruce me disse:”: Faça o que nasceu pra fazer, ou o que o mundo que te cerca te forçou a fazer. Você pode não encontrar prazer, mais paralisa um pouco a sua dor.”
Abri a gaveta do criado, dei uma ultima olhada na foto dela, fiz uma oração e decidi trabalhar muito no dia seguinte, assim iria doer menos à distância.
Por volta de oito horas da manhã, levantei atrasado, e só quando cheguei a minha sala no serviço me dei conta do acontecido.
- Puta Merda! Paguei a conta do Batman!

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